A crise climática não é uma ameaça distante - para os cerca de 570 milhões de pequenos agricultores do mundo, ela já está tornando a vida muito mais difícil. Eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes estão queimando colheitas, desorganizando sistemas alimentares e intensificando a fome de milhões de pessoas. Mais de um quarto da população mundial já vive em situação de insegurança alimentar, e com a demanda por alimentos prevista para aumentar com o crescimento populacional, o desafio de alimentar o planeta em aquecimento é imenso. Continuar a depender da agricultura industrial - responsável por até um terço das emissões globais de gases de efeito estufa - é uma receita certa para o desastre.

Mas e se a solução para todos esses enormes problemas estivesse em algo tão pequeno quanto uma semente? As sementes indígenas, valorizadas por sua variedade e resiliência, têm o potencial de revolucionar a forma como produzimos alimentos. Em um momento em que choques climáticos e custos crescentes estão agravando a insegurança alimentar em todo o mundo, as apostas são altas - e as sementes indígenas podem ser a chave para fortalecer os nossos sistemas alimentares desde a base.

Primeiro: O Que Exatamente é uma Semente?

Em resumo, sementes são essencialmente pequenos cofres genéticos ricos em nutrientes, cada um carregando um código único que determina como uma planta vai crescer. A capa protetora de uma semente permite uma espécie de viagem no tempo - dentro dela, futuras plantas podem permanecer dormentes por anos, esperando pelas condições certas para brotar e ganhar vida.

Mas nem todas as sementes são criadas iguais. As sementes indígenas - também chamadas de sementes nativas ou tradicionais - são cultivadas ao longo de gerações para conter características únicas adaptadas a ambientes específicos. Por exemplo, feijões tepary, nativos do árido sudoeste dos EUA, podem prosperar com pouquíssima água. O amaranto, uma cultura básica nutritiva dos incas e astecas, é naturalmente resistente ao estresse térmico. E a mandioca no Brasil é uma cultura básica resistente à seca para muitas comunidades indígenas que prospera em solos secos, tornando-a essencial para a segurança alimentar em climas semiáridos.

Essas sementes não só resistem melhor às mudanças climáticas, como também ajudam a preservar a diversidade genética e cultural dos povos que as cultivam.

As Raízes da Proteção das Sementes

Características como resistência à seca ou ao calor extremo são verdadeiros escudos naturais contra os impactos das mudanças climáticas. Mas essas adaptações não aconteceram por acaso - foram cultivadas e preservadas por guardiões de sementes, agricultores que cuidadosamente selecionam, salvam e compartilham sementes adequadas às condições locais ao longo das gerações.

Essa prática é uma forma essencial de preservação cultural e exercício da soberania alimentar. Ao cultivar e transmitir essas sementes tradicionais, os guardiões ajudam a manter alimentos resilientes e geneticamente diversos para que futuras gerações possam se adaptar a incertezas ambientais ou econômicas.

Durante a maior parte da história da humanidade, a preservação de sementes era uma prática comum. Mas a era da agricultura industrializada, iniciada em meados do século 20, mudou tudo.

Agricultura Tradicional x Agricultura Moderna: Dois Caminhos Que Se Distanciaram

Impulsionada pela chamada Revolução Verde, a agricultura industrial tem sido definida pela proliferação de táticas tremendamente bem-sucedidas para aumentar a produção de culturas básicas, como trigo e arroz, agora turbinadas por fertilizantes sintéticos e pesticidas químicos. Essa estratégia fez as colheitas dispararem, marcando uma vitória na luta contra a fome. Mas um foco obsessivo em altos rendimentos de apenas algumas culturas teve um preço alto.

Hoje, a agricultura industrial é dominada por um pequeno grupo de corporações que vendem sementes geneticamente uniformes, projetadas para cultivos em larga escala. Leis rigorosas de patentes impedem os agricultores de guardar, compartilhar ou replantar essas sementes de propriedade das empresas, obrigando-os a comprá-las novamente a cada safra. Essas sementes também requerem um coquetel poderoso de insumos químicos, que inadvertidamente degradam a saúde do solo, poluem fontes de água e geram emissões de gases de efeito estufa.

Já os métodos agrícolas indígenas representam uma forma mais sustentável de cultivar alimentos. Os guardiões de sementes priorizam a biodiversidade e o equilíbrio ecológico de uma forma que ajuda a estimular ecossistemas resilientes e melhorar a saúde do solo, enquanto permitem que os agricultores mantenham a propriedade sobre suas colheitas.

O Perigoso Declínio da Diversidade das Sementes

Décadas de agricultura industrial reduziram drasticamente a diversidade dentro do nosso sistema alimentar, incentivando os agricultores a se concentrarem nessas culturas básicas de alto rendimento. Globalmente, o mundo perdeu impressionantes 75% da diversidade agrícola entre 1900 e 2000, tendência observada em quase todos os lugares. A China, por exemplo, perdeu 90% das variedades de trigo em poucas décadas, enquanto o México perdeu 80% do seu milho desde a década de 1930. Hoje, apenas 15 culturas representam 90% da produção global de alimentos.

Essa homogeneidade genética coloca nosso sistema alimentar em uma posição precária, deixando culturas inteiras vulneráveis a choques climáticos, surtos de doenças, pragas ou outras emergências inesperadas. As consequências podem ser catastróficas, como em 1970, quando uma doença devastou a produção de milho nos EUA e custou aos agricultores 15% de sua colheita, totalizando cerca de US$1 bilhão de dólares em perdas. E a história ameaça se repetir: atualmente, uma infecção fúngica assassina está assolando o tipo mais comum de banana no mundo, colocando em risco a espécie inteira em escala global.

Guardiões de Sementes em Ação no Brasil

É por isso que, em todo o mundo, comunidades indígenas estão resistindo, revivendo práticas de preservação de sementes. Reintroduzir essas práticas tradicionais é crucial para a restauração ecológica. Especialmente no Brasil, onde biomas críticos estão sob ameaça constante de desmatamento e agricultura industrial, enquanto comunidades indígenas regularmente arriscam suas vidas para proteger suas terras nativas.

Um exemplo inspirador é o da guardiã de sementes brasileira Maria Silvani Gonçalves dos Santos, conhecida como Dona Silvani. Ela dedicou a vida à preservação de sementes crioulas e à agrobiodiversidade na região semiárida da Caatinga, mantendo viva a tradição indígena mesmo diante das pressões impostas pela modernidade. “Eu vivo na Caatinga por escolha. Eu poderia viver na cidade grande com meus filhos e meus pais, mas não. Eu prefiro viver aqui.”

Com o apoio do IFAD (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, agência da ONU para agricultura), Dona Silvani aperfeiçoou suas práticas de preservação de sementes ao adotar técnicas sustentáveis, como irrigação com cisternas e reaproveitamento de águas cinzas. “Antes, nossa vida era muito difícil. A água era difícil de obter. Mas aí chegaram as cisternas de reuso," ela explica. "Eu reutilizo o resto da minha água porque ela tem um sistema de filtragem, e com ela eu rego minhas plantas, frutas e minha sementes crioulas".

Benefícios para as Pessoas e para o Planeta

Investir em sementes e na resiliência agrícola não garante apenas a segurança alimentar - também beneficia o planeta. Estudos comprovam que a natureza é mais saudável em territórios gerados por povos indígenas, muitas vezes com níveis de biodiversidade iguais ou até superiores aos de áreas de conservação protegidas por governos. Por isso, cientistas estão em uma missão para preservar sementes indígenas, criando projetos dedicados à proteção dessas variedades por seu papel crucial na restauração de habitats naturais frente aos extremos climáticos.

Mas os benefícios não são apenas futuros — eles já podem ser sentidos hoje. O agrônomo Victor Leonan comprovou que áreas cultivadas com sementes tradicionais apresentaram quase o dobro de biodiversidade em relação a áreas com sementes comerciais, o que impulsionou o aumento da fauna e da flora locais. “Observamos um aumento de 87% das plantas nesse ambiente, o que mostra uma regeneração da flora da Caatinga, além da volta de animais silvestres que haviam desaparecido.” 

E tem mais: muitos pequenos agricultores que adotam práticas de agricultura regenerativa registram ganhos financeiros a longo prazo, justamente por dependerem menos de sementes patenteadas e insumos químicos caros. Como explica Leonam: "A ideia é que essas atividades gerem renda, prosperidade econômica e riqueza para as famílias que mantêm este sistema.”

Um Futuro Com Raízes nas Sementes

A crise climática exige mudanças radicais na forma como operamos o mundo, e isso inclui repensar como cultivamos nossos alimentos. Os guardiões de sementes indígenas oferecem um modelo para um futuro mais sustentável, que prioriza a resiliência a longo prazo em vez do lucro de curto imediato.

Um sistema alimentar resiliente começa pelas sementes. O futuro da agricultura precisa estar nas mãos de agricultores, comunidades e guardiões de sementes que, há séculos, protegem a biodiversidade do planeta, uma semente de cada vez.

Explainer

Defenda o Planeta

Por que é hora de trazer de volta os Guardiões de Sementes: a corrida para salvar as sementes indígenas.

Por Victoria MacKinnon